De médico a professor, de pesquisador a escritor, Camilo Xavier é um homem de constância na fala, no raciocínio, no olhar e na ação
Aos 98 anos, o médico ortopedista e escritor Camilo André Mercio Xavier carrega nos olhos um brilho que muita gente mais nova não possui. A passos seguros e com gestos firmes, ele se posiciona com uma segurança invejável — por fora e por dentro — narrando de si um pouco, para compartilhar com o mundo o que a vida foi capaz de lhe sussurrar até aqui. “Eu gosto de pensar que o movimento é a expressão mais honesta da vida”, diz, com a serenidade de quem estudou o corpo humano por décadas e hoje o compreende como poesia.

Ribeirãopretano nascido em 1927, formou-se em Medicina pela Faculdade Federal de Medicina do Rio Grande do Sul, em 1952. De volta ao interior paulista, em 1960 ingressou como docente na área de Ortopedia e Traumatologia da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo (FMRP-USP), onde construiu uma carreira sólida e longeva de 37 anos. “Escolhi a Medicina por um motivo simples: poder ser vir”, responde de pronto. Indo um pouco mais fundo, porém, a escolha se transforma em homenagem. “Meu pai era veterinário. Eu o via cuidando dos animais e me encantava com aquilo… Sua habilidade, sua sensibilidade e sua entrega me inspiraram e pensei em elevar esse nível ao patamar de médico”, conta.

Em sua trajetória, o verbo servir nunca se limitou à sala de cirurgia. Ele viveu intensamente a profissão escolhida, abraçando a carreira universitária ao longo de quase quatro décadas, e participando de incontáveis atividades científicas na área de concentração de Ortopedia. Como professor, pesquisador e gestor, também ajudou a erguer a estrutura do que viria a ser o atual Departamento de Ortopedia e anestesiologia da FMRP-USP, coordenando projetos pioneiros de ensino e pesquisa e incentivando novas gerações de médicos.
Hoje, em meio à poesia e ao voluntariado, Camilo se dedica aos campos familiar, social e acadêmico, distribuindo seu tempo entre afazeres e hobbies. Gosta de assistir filmes — prefere documentários, shows musicais, campeonato de tênis e futebol — e faz aulas de informática em domicílio, para melhor conhecer as novas tecnologias.

“Quando mais jovem, praticava um tênis recreativo com meu irmão Henrique, já falecido, no Clube de Campo. Atualmente, sigo os torneiros televisionados”, conta. Ele ainda cultiva leituras de periódicos, livros de literatura, poemas e narrativas, mantém uma dieta saudável, variada e com ênfase no consumo de produtos naturais e faz duas a três sessões de fisioterapia na semana, incluindo hidroginástica e alguma caminhada.
“Gosto de ir ao clube para fazer musculação e almoçar com minhas filhas aos domingos. Elas também me proporcionam passeios e participação em reuniões. Aliás, são minhas grandes incentivadoras!”, pontua.
Para Camilo, o envelhecimento faz parte da vida. “Deve ser encarado não como um fardo, mas como uma conquista, que permite aceitar limitações na medida que nossa capacidade de realizar atividades se mantenha autônoma”, enfatiza.
ETERNO APRENDIZ
Como professor titular da USP, Camilo presidiu a Sociedade Brasileira de Ortopedia e Traumatologia e foi um dos sócios fundadores da Academia Brasileira de Ortopedia e Traumatologia. Em sua carreira acadêmica, viajou inúmeras vezes ao exterior — Inglaterra, Alemanha, Estados Unidos, França e Portugal — para compartilhar e beber de outras fontes de conhecimento. Foi responsável pelo curso de pós-graduação em Bioengenharia e pela organização da 1ª Jornada de Ortopedia do Interior do Estado de São Paulo, marco histórico para a área.

Em estreita colaboração com o quadro de assistentes e docentes, ele participou de inúmeras atividades, tanto clínicas como experimentais, incentivando a produção de pesquisas nos laboratórios de ciências básicas. Os trabalhos voltados basicamente para a assistência, ensino e pesquisa permitiram a criação dos cursos de residência e pós-graduação.
“Envolvido na dinâmica da relação entre corpo e movimento, me aprofundei no estudo da biomecânica do aparelho locomotor, tanto que introduzi a matéria no curso de pós-graduação em Bioengenharia que fundei, voltado a residentes da área médica e de engenharia, através de intercâmbio entre a Escola de Engenharia de São Carlos da USP e a Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da USP”, recorda.

Para Camilo, quando se ensina, o aprendizado se renova. “O professor é o primeiro aluno da própria aula”, comenta. Aos quase cem anos, seu humor fino e lucidez impressionam e sua mensagem para quem está começando é firme. “Minha sugestão para os novos médicos é perseverar, acreditar e aguçar os sentidos para melhor saborear os saberes adquiridos”, aconselha.
NOVOS RUMOS
Aposentado da vida universitária, Camilo não parou. Apenas mudou de cenário, voltando toda a sua energia para a realização de um projeto pessoal que acalenta o coração, dá sentido à vida e traz paz: escrever. “Deparei-me com a ideia de me tornar um escritor. Foi um salto bem grande, que encarei com disposição e vontade de enfrentar”, define, referindo-se à transição da medicina para a literatura.
Ele passou a frequentar as academias e os institutos literários locais, sendo admitido primeiramente na Academia de Letras e Artes de Ribeirão Preto (ALARP). “De fato, captei que a prática da literatura é uma arte que nos conduz na busca de alguns traços da nossa personalidade, e a seguir ficou clara a possibilidade de transferir, através da impressão de livros, para o leitor”, diz.
Nessa nova jornada, Camilo tornou-se presidente da ALARP e, depois, da Academia Ribeirãopretana de Letras (ARL). O início das publicações foi em 1994, com “Fugas Cronológicas”. Depois vieram outros oito: “Trilhas e Travessias”; “Volterra”; “Alcance”; “Espiral”;“Alvoroço”; “88.com”; “Caderno de Memórias” e o último, lançado em 2023, “Pausas para Não Parar”. “Já está no forno outro livro, que devo lançar em 2026, que se chamará ‘Tons do tempo’”, conta o poeta.
INCUBADORA CULTURAL

Usando os livros e palavras como novas ferramentas de trabalho, o Camilo escritor partiu para a divulgação e valorização cultural entre os jovens, dedicando-se à Incubadora Cultural — um projeto pessoal, iniciado em 2013, em parceria com a Escola Estadual Otoniel Mota, onde foi aluno e hoje é professor voluntário. “Quis retribuir à escola o que recebi dela. É um modo bonito de fechar o ciclo”, afirma.

A proposta é simples, mas transformadora: incentivar jovens a escreverem. Desde então, já são 13 livros publicados, reunindo textos dos alunos, ilustrados e revisados com o cuidado artesanal de quem acredita no poder da palavra. “Enxergar o aluno não só como sujeito passivo, mas como uma pessoa ativa no processo educativo, sempre foi uma das metas que nos propusemos alcançar, o que foi plenamente atingido”, enfatiza.
O projeto expandiu-se para plataformas digitais — Instagram, site, TV e podcast — e hoje integra o patrimônio cultural da cidade, inspirando novas gerações de leitores e autores.
Através das suas “fecundas atuações”, como define o escritor, a “Incubadora Cultural’ vem tocando a vida de milhares de estudantes que já passaram por ele. Integrado ao patrimônio cultural da cidade, transformou-se em uma entidade, onde as pessoas exercitam coletivamente o sentir intelectual e nele permanecem. Por isso, o projeto conta com a adesão de muitos professores e outros profissionais.
“Devemos ter em mente que a literatura não é uma fábrica de sonhos, mas uma realidade palpável, que se alimenta de constantes inovações. Ao final, constatamos que ela é um grande agente facilitador do aprendizado”, ressalta.
Recentemente lançado, o novo livro publicado no projeto – HORIZONTE —, segundo Camilo, ficou impecável. “É uma edição recheada de magnificas ilustrações ligadas ao tema que foi objeto de leitura e produção dos textos”, conta o idealizador. O livro celebra a força das ideias e a necessidade do olhar amplo — tanto sobre o corpo, quanto sobre o espírito. “A relação entre corpo e movimento é essencial. Um corpo que se move em harmonia guarda, em si, a própria definição de saúde”, completa.

Em abril de 2025, estreou o programa Mão Dupla Cultural, na Rádio Nova Ribeirão, ampliando o diálogo da incubadora para o formato podcast. A partir de 2026, o acervo com as produções e memórias do projeto será transferido para a Fundação do Livro e Leitura de Ribeirão Preto, consolidando um legado vivo.
Toda essa disposição para realizar nasce da relação que Camilo faz entre corpo e movimento e a sua influência na saúde e na qualidade de vida. “É muito necessária e deve ser reconhecida como ingrediente fundamental para bem cuidar e tratar do aparelho locomotor”, enfatiza.
Ligado como está às atividades literárias, Camilo gostaria de não só nelas permanecer como torná-las uma ferramenta de uso pessoal e coletivo. “Não há régua para medir cultura”, afirma o escritor, “precisamos aferi-la através daquilo que produzimos, tornando-nos capazes e hábeis para dela tirar o máximo proveito e enfim dela usufruir”, continua.
A literatura, para Camilo, é também uma forma de ciência: uma experiência de alma. Nas entrelinhas, o que se lê é um recado maior: a verdadeira juventude é movimento — de pensamento, de criação, de entrega.
Fonte: Revista Revide Ancienne – Capa – Nº 22 – novembro de 2025

























































































